Enquanto não li ainda a continuação de Warrington*, a de Dacre Stoker (chamerei-o de Stokinho para diferenciar d"o" Stocker de agora por diante) e Ian Holt caiu-me nas mãos tão logo encontrei sua edição pela Ediouro. Com 480 páginas, preço médio de R$ 50,00 e um posfácio com várias notas onde os autores desvendam o processo de criação da história e suas curiosidades, a versão brasileira de cara apresenta um problema já apontado por outros resenhistas: a arte da capa nacional é uma das capas norte-americanas do livro de Freda Warrignton. Desatenção dos editores brasileiros? Bom, em frente.
Como disse acima, a história aqui se passa 1912, 22 anos após os eventos do livro de Stoker. "A trama original não se passa em 1988, mas em 1893.", você pode pensar. Calma, voltarei a este tópico adiante. Apesar de terem vencido Drácula, os heróis Jonathan Haker e sua esposa Mina, Jack Seward, Arthur Holmwood e o dr. Abraham Van Helsing levam vidas destruídas pela passagem do conde pela Inglaterra e o posterior confronto entre eles na Transilvânia. Jonathan e Mina tem um filho já no fim da adolescência, Quincey, mas levam um casamento arrasado e infeliz enquanto lidam com a rebeldia do seu rebento, Seward se tornou um viciado em morfina e perdeu tanto sua família como sua reputação de médico, incluindo seu sanatório em Withby, Holmwood passou a levar uma existência devastada pela morte de Lucy, tentando se matar em duelos e aventuras e Van Helsing foi consumido pelo fanatismo de sua autoimposta missão contra os mortos-vivos. Neste cenário desolador, aparece a ameaça da condessa Elizabeth Bathory, uma vampira muito mais ardilosa e desumana que adversário anterior do grupo e disposta a cobrar uma dívida de sangue. O subtítulo em inglês do livro, the Un-Dead, foi retirado da História: originalmente seria o nome do livro de Bram Stocker, mas seu editor resolveu alterá-lo para simplesmente Drácula de última hora.
![]() |
Dacre Stoker e Ian Holt |
É claro, não se trata uma obra escrita pela pena de Stoker e existem diferenças notáveis entre os textos de ambos. Embora não lembrando pela sua estilística, Bram foi genial ao montar sua narrativa com recortes de jornal, pedaços de diários dos personagens, anotações etc. Transitando entre primeira e terceira pessoa, seu Drácula é uma colagem de acontecimentos aterradores onde leitor vai vislumbrando aos poucos em sua cabeça o quadro assustador que se desvela a sua frente até o clímax. Não foi o primeiro romance gótico de sua época e nem o mais rentável em seu lançamento, mas nos anos seguintes galgou ambas as posições até o topo. Já em Drácula, o Morto-Vivo temos a tradicional prosa em terceira pessoa. Além disso, existe a presença de um recurso literário típico dos atuais romances estadunidenses ao se introduzir um personagem aleatório, explicar detalhes rápidos sobre sua vida até ali apenas para fazê-lo descobrir algo impactante como um corpo ou um detalhe bizarro.
Outro problema do argumento é a inclusão excessiva de fatos e personagens históricos da época. De Henri Salmet a Charles Darwin, passando por Frederick Abberline, John Barrymore (bisavô da atriz Drew Barrymore), Jack, o Estripador e outros, o livro a todo momento apresenta alguma ligação de algum dos heróis com alguém famoso. O próprio Bram Stocker e a primeira edição de seu romance aparecem como personas dramáticas em determinado momento da narrativa. A partir de certo ponto, torna-se quase irreal a possibilidade de um punhado de pessoas conhecidas entre si estarem relacionadas ao mesmo tempo com tantas celebridades, boas ou infames, e eventos importantes. A recorrência dessas referências em número exorbitante - algo bastante presente nas produções culturais estadunidenses da atualidade, sejam quadrinhos, filmes, músicas etc - acabam sendo forçadas e até alienantes para muitas pessoas e, ao fim, tornam o texto juvenil e bobo.
![]() |
Bram Stocker em 1906. |
Apesar dos personagens centrais terem sua dose de construção e tragédia, muitos aparecem descaracterizados e modernizado demais, como Mina. Considerada uma vítima do cruel conde no livro de Stoker, aqui ela se torna um produto do feminismo do século XXI e sua relação com o monstro se torna amorosa, enquanto o valente Jonathan é um beberrão covarde e fracassado. O personagem mais desenvolvido e carismático é Quincey Hacker, o filho do casal, e por uma razão bem óbvia: Bram apenas o cita brevemente ao fim de Drácula como um bebê de colo. Não há qualquer construção prévia de sua personalidade para a dupla de escritores destruir em nome de "necessidade criativa" ou de "adequação" ao público atual. Já Bathroy, a grande vilã, é uma pálida ameaça se comparada ao Drácula do livro de 1987, embora a toda hora os autores se esforcem para fazê-la parecer trágica e frisando o quão mais poderosa em relação ao conde ela é.
Enquanto produto, o livro foi escrito com um objetivo claro: devolver à família Stoker algum poder autoral sobre o personagem do conde vampiro e o romance de Bram. Isto é dito claramente pelos autores nas notas finais. Sim, Drácula é um dos muitos casos envolvendo direitos autorais nos últimos 100 anos ou mais com desfecho triste para o criador ou, no caso aqui, seus descendentes. Por conta de uma pequena cláusula não cumprida, o livro caiu em domínio público nos EUA logo após a morte do escritor em 1912, deixando sua família com controle sobre a obra apenas no Reino Unido e ela sempre se ressentiu com o fato. E com razão, pois uma vez livre de qualquer amarra jurídica com Florence, viúva do autor, Hollywood e o cinema norte-americano foram inundados de diversos filmes baseados em Drácula, criando novos fatos e contradizendo tanto o romance quanto a mitologia em torno dos vampiros, fosse aquela criada por Stoker, fosse a existente no folclore popular existente em torno deles até então. Logo no posfácio, Holt afirma que o objetivo dele e Stokinho foi lutar contra a canibalização e descaracterização do romance original desde então pela indústria de cinema dos Estados Unidos e, por tabela, outras mídias.
![]() |
DRÁCULA (1931) estrelado por Bela Lugosi foi a única adaptação para o cinema autorizada pela família Stoker. |
O livro de Stokinho e Holt torna-se aqui uma enorme e infundada incoerência. Se foi escrito para devolver aos Stoker algum controle sobre Drácula, o romance, e estancar o oportunismo em torno dele pelo fato da obra ter caído em domínio público, por que se vale de tantos elementos criados nessas produções oportunistas e "canibais", muitos deles inclusive contraditórios à obra de Bram Stoker? Por que os valida e claramente contradiz o romance original do qual se diz defensor? Tamanha incoerência de argumentos não pode ser negligenciada. Assim, esta foi a pá de cal em qualquer mérito que o livro poderia ter para mim ao menos como uma "sequência" irregular. Drácula, o Morto-Vivo é uma colagem de tudo que os vampiros se tornaram desde o filme estrelado por Bela Lugosi para cá, enterrando inclusive a imagem do conde como vilão.
Neste ponto, temos a principal incoerência entre as duas obras: Drácula, o personagem. No romance de Stoker, ele é um monstro sem alma e horrendo, um morto-vivo que se ergueu da morte graças à diablerie e magia negra. Sua passagem sempre deixa um lastro de morte e dor. No versão de Stokinho e Holt, porém, ele é redimido em um herói maldito bem ao gosto da atual audiência adolescente acostumada a Crepúsculo e Vampire Diaries. Até os acontecimentos mais drásticos e chocantes do romance original, como ele alimentar suas "noivas" com um bebê, são reescritos, explicados, recontados e atenuados, quebrando a casca de vilão e tornando-o um benfeitor incompreendido pelos "novos tempos".
Justamente por essa manipulação de continuidade e fatos do romance original, Drácula, o Morto-Vivo funciona muito melhor como uma sequência do filme de Francis Ford Coppola, Drácula de Bram Stoker (EUA, 1992) mesmo com algumas discrepâncias entre a sequência final da película e o relato em flashback mostrado aqui. Apesar do nome e de um grau alto de fidelidade a vários pontos do livro de 1897, o longa de Coppola também tomou várias liberdades criativas com o material, inserindo um romance entre Drácula e Mina e conectando no imaginário das novas audiências o conde Drácula ao príncipe Vlad Drácula III, personagem histórico real do qual Bram extraiu o nome de seu personagem para o horror e revolta dos romenos de ontem e hoje, pois ele é um herói nacional em seu país, algo aliás também debatido no argumento de Stokinho e Holt em algumas sequências.
![]() |
Drácula (Gary Oldman) e Jonanthan Haker (Keanu Reeves) em cena do filme DRÁCULA DE BRAM STOKER. |
Por fim, nas notas criativas, Holt diz que não havia uma sequência de Drácula escrita quando ele e Stockinho resolveram começar o projeto deles, o que é uma mentira, pois o livro de Freda Warrington já estava no mercado há 12 anos e com rumores na época (2009) de ganhar um filme. Desinformação? Duvido muito. Holt o tempo todo se gaba de seu alto nível de conhecimento sobre tudo relacionado ao conde vampiro, seja o livro, seja o personagem, sejam os filmes. Incoerências e mentiras nunca casam em minha mente.
Se você conhece muito os vampiros pelo cinema de 1930 até a atualidade, Drácula, o Morto-Vivo vale a leitura, ainda que por curiosidade, assim como para aqueles buscando uma literatura casual e despretensiosa de mistério (esqueça o horror). Porém, estudiosos e fãs do vampiro tradicional/folclórico, do Drácula histórico e/ou do romance de Bram Stocer devem proceder com extrema cautela com este livro. É provável que a presente obra deixará um gosto amargo de decepção e um certo repúdio ao seu final para eles. Uma certeza eu tive após fechar meu exemplar: estava ainda mais curioso para ler o trabalho de Freda Warrington.
* Inédita no Brasil, embora tenha sido lançada em Portugal pela editora Século XXI.
Muito boa resenha! Deu vontade de ficar longe do livro hehehe. Massa mesmo. E eles deturpam o que defendem, hunf!
ResponderExcluir