Diferente do que se tem divulgado nos últimos anos em filmes e animações, Tarzan não foi criado por gorilas e a identidade dos símios que o encontraram pode surpreender você!
Tarzan, junto a Conan, Peter Pan e Mowgli, faz parte de um conjunto
de personagens os quais o grande público de hoje não faz ideia terem
surgido em livros. Pior: eles ganharam tantas e tão sofríveis adaptações para outras
mídias ao longo das décadas que a versão original deles é pouco conhecida pela maioria das pessoas.
Por fim, temos como agravante o detalhe destas abordagens pouco (fide)dignas, cujo alcance é atualmente muito maior e acessível do que as obras nas quais se originaram, impregnarem as audiências com versões totalmente descaracterizadas destes personagens. Quadrinhos, filmes para TV e cinema, animações e até games se encarregaram, ao longo das décadas, de fixar no imaginário popular uma visão totalmente errada destas obras, seus protagonistas, coadjuvantes e vilões.
Por fim, temos como agravante o detalhe destas abordagens pouco (fide)dignas, cujo alcance é atualmente muito maior e acessível do que as obras nas quais se originaram, impregnarem as audiências com versões totalmente descaracterizadas destes personagens. Quadrinhos, filmes para TV e cinema, animações e até games se encarregaram, ao longo das décadas, de fixar no imaginário popular uma visão totalmente errada destas obras, seus protagonistas, coadjuvantes e vilões.
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Tarzan e Kala em Greystoke - A Lenda de Tarzan (1984) Fonte: the moviola |
Foi assim que,
por exemplo, o Peter Pan de James M. Barrie se tornou, na animação da
Disney em 1953, um
garoto andrógino e inocente desprovido de todas suas alegorias envolvendo a transição da infância para a vida adulta, assim como dos assassinatos de um ou outro garoto perdido sob seu comando que crescia conforme relatado no livro original. Em 1982, o Conan de Robert E. Howard foi apresentado como um brutamontes silencioso
e um tanto burro no cinema ao ser vivido por Arnold Schwarzernegger.
Tarzan,
de longe, foi o personagem que mais sofreu com as más adaptações. O
número delas é simplesmente avassalador e vieram em todos os formatos, de séries para a TV a animações para o cinema. O próprio autor do personagem,
Edgar Rice Burrgough (a quem chamarei de ERB daqui por diante),
reconheceu em seu tempo em vida que seu Homem-Macaco não tivera uma
transposição decente para o cinema.
O caso Tarzan, no tocante às adaptações ruins, é a prova de como elas, a despeito do dinheiro que arrecadam e seus variados níveis de sucesso alcançados, podem ser danosas para a imagem dos personagens junto ao grande público a começar pelos filmes estrelados por Johnny Wisemuller, responsáveis por incutir nas pessoas a imagem do Homem-Macaco como um selvagem ignorante e imbecil. Quem não se lembra, mesmo sem saber ter se originado no primeiro longa estrelado pelo ex-nadador em 1932, da famosa frase "mim, Tarzan, você, Jane"?
O caso Tarzan, no tocante às adaptações ruins, é a prova de como elas, a despeito do dinheiro que arrecadam e seus variados níveis de sucesso alcançados, podem ser danosas para a imagem dos personagens junto ao grande público a começar pelos filmes estrelados por Johnny Wisemuller, responsáveis por incutir nas pessoas a imagem do Homem-Macaco como um selvagem ignorante e imbecil. Quem não se lembra, mesmo sem saber ter se originado no primeiro longa estrelado pelo ex-nadador em 1932, da famosa frase "mim, Tarzan, você, Jane"?
Depois
da ideia de Tarzan ter sido um selvagem abrutalhado, a noção mais
errônea em torno do personagem é a dele ter sido criado por gorilas,
consagrada a partir do longa-metragem animado da Disney em 1998 seguida pela
nova animação 3D lançada em 2013. Agora, uma nova superprodução com lançamento em 2016 volta, novamente, a apresentar a ideia do personagem ter sido criado por estes símios.
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Tarzan dos estúdios Disney. |
Mas se Tarzan, ou John Clayton (seu nome), não foi criado por gorilas, então o foi por qual espécio de símios?
Para
basear este estudo, usei como referência principal a edição Tarzan of
the Apes da Dover Publications Inc. com texto integral de ERB. Embora haja outras duas dezenas de
livros e contos do herói escritos por ele, é aqui, em sua primeira aparição, onde se encontram 99% das
pistas necessárias para responder ambas as perguntas.
Tarzan of the Apes foi publicado pela primeira em 1919. A história se passa precisamente em 1909 (p. 126) onde encontramos Tarzan com 20 anos e Jane Porter com 19.
MACACO x MACACO
O
primeiro problema que precisamos confrontar é em torno da semântica. ERB
explica que Tarzan foi encontrado por Kala, um membro dos grandes antropoides (p. 27), também chamados de grandes macacos (great apes) e é justamente este termo o qual causou e causa tanta confusão a quem
não teve contato com os romances ou os melhores quadrinhos a adaptarem-nos.
Embora na língua portuguesa usemos o
termo macaco indiscriminadamente para qualquer símio, dos menores aos
maiores, em Inglês há termos diferentes para os dois tipos: monkey se aplica aos pequenos primatas de cauda como o mico-leão dourado cuja vida se dá nas árvores, enquanto ape
é utilizado para aqueles maiores, sem cauda e cuja existência se
desenvolve basicamente no solo. Podemos listar aqui o gorila e o
orangotango, além do chimpanzé.
A raça ou espécie de macacos que criou Tarzan é, de fato, chamada de great apes, comumente traduzida por grandes macacos
em Português há décadas seja em livros ou revistas em quadrinhos. Já podemos, então, ter ideia de não ser qualquer tipo de
primata: podemos centrar nossa busca nos grandes símios sem cauda do qual os gorilas, claro, fazem parte. O próprio herói é chamado de Ape Man, o Homem-Macaco.
OS GRANDES MACACOS
Os grandes macacos de ERB, porém, são no mínimo exóticos. Vejamos alguns de seus hábitos e características:
- Os machos são enormes, possuindo tranquilamente uns 2 metros de altura quando eretos.
- Sua testa é curta e recessiva; (p. 25)
- Eles se alimentam, por exemplo, de palmito, pássaros, lagartos, pequenos mamíferos, ovos e insetos. (p. 51)
- Locomovem-se tanto por terra quanto pelas árvores, usando galhos e cipós como base, habilidade que o próprio Tarzan depois passa a dominar com maestria e pela qual fica famoso; (p. 26 entre outras)
-
Possuem um tipo de ritual chamado dum-dum onde, aliás, além de
praticarem um tipo de dança, também executam rituais cerimoniais nas quais usam instrumentos de percussão como tambores de barro e porretes; (p. 46)
- Nestas festividades, os grandes macacos praticam canibalismo ritualístico com membros capturados de outras tribos; (p. 47-48)
- Eles falam. Não apenas isso: os grandes macacos possuem um alfabeto rudimentar.
- Eles são indivíduos e dão a si e a suas crias, nomes: Kerchak, Tublat, Kala, Terkoz;
- Eles são indivíduos e dão a si e a suas crias, nomes: Kerchak, Tublat, Kala, Terkoz;
- São inimigos dos gorilas. (p. 38)
- Terkoz, filho de Tublat (padrasto de Tarzan), não exita em considerar se acasalar sexualmente com Jane, uma humana, quando os demais macacos ficam com suas fêmeas após o expulsarem da tribo. (p. 135)
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Tarzan enfrenta Terkoz. Arte de Joe Jusko. |
Todos
os itens listados são desconcertantes e, enquanto alguns por si já
serviriam para por por terra a ideia de gorilas terem criado o pequeno
John Clayton quando seus pais morreram, ainda não respondem de forma
clara a qual espécie perteciam os símios. Ainda assim, vamos analisar
todas as afirmativas, em especial as quatro e chocantes últimas.
- Gorilas são conhecidos por suas enormes testas. Já os grandes macacos tem testas curtas.
- Não
há catalogada pela ciência nenhuma espécie de primata, pequena ou
grande, com uma dieta igual a deles, nem tão diversificada.
Tampouco existem macacos que canibalizam membros da própria espécie, embora passam matar uns aos outros em brigas e até "desavenças domésticas".
- Chimpanzés, por outro lado, são capazes de matar macacos de outras espécies para se alimentarem e carne é o único alimento que dividem entre si[1].
- Chimpanzés, por outro lado, são capazes de matar macacos de outras espécies para se alimentarem e carne é o único alimento que dividem entre si[1].
- Macacos
de grande porte, os apes, não se locomovem por árvores, pulando de galho em galho ou usando cipós como os pequenos. Apesar de alguns ocasionalmente subirem em alguma árvore ou até se alojarem em galhos, eles tem uma vida no solo, onde andam, comem, reproduzem-se e morrem.
- Símios não possuem costumes tribais articulados típicos de formas superiores
de hominídeos como o homo sapiens ou o homem de cro-magnon tinham. Eles não
fazem sessões para dançar e muito menos práticas ritualísticas, embora
existam costumes imanentes de toda espécie animal em suas comunidades
(definição de chefia, ritos de acasalamento etc).
- Não
há, registrada pela ciência até hoje, nenhuma espécie de símio capaz de
falar, mesmo da forma como papagaios o fazem, imitando os demais sons.
- Algumas espécies de macacos são consideradas, oficialmente pela ciência, como usuárias de ferramentas, mas nada sofisticado como a construção de tambores ou a utilização de galhos para extrair música deles. Estamos falados das hastes que, por exemplo, os gorilas usam para extrair formigas e insetos dos quais se alimentos de seus ninhos.
- Macacos não sentem, deliberadamente, atração sexual por humanos. Isto é realmente algo desconcertante em especial no primeiro romance de Tarzan pois além da já citada cena onde Terkoz rapta Jane para se acasalar com ela, o próprio Tarzan desconfia por boa parte do livro que seu pai foi um humano como ele e sua mãe, a macaca Kala, sendo ele resultado desse cruzamento. Mais adiante, em Paris e já tendo reassumido a identidade de John Clayton, o personagem debate seriamente com um policial sobre as possibilidades de um híbrido homem/macaco possuir impressões digitais.
Os grandes antropoides de ERB são, sem dúvidas, diferentes de outros macacos grandes ou pequenos, mas até que ponto? Estamos realmente falando de macacos ou de algo mais?
MAIS SEMÂNTICA
Os grandes antropoides de ERB são, sem dúvidas, diferentes de outros macacos grandes ou pequenos, mas até que ponto? Estamos realmente falando de macacos ou de algo mais?
MAIS SEMÂNTICA
Durante os romances sobre Tarzan, ERB nos apresentou uma lista rica de palavras e expressões usadas pelos grandes macacos. Eis algumas:
Tarzan - "pele branca" literalmente, o nome dado a John Clayton ainda bebê por Kala, sua mãe-macaca;
Numa/Sabor - leão/leoa;
Sheeta - leopardo;
Histah - cobra;
Tublat - "nariz qubrado", o padrasto de Tarzan, marido de Kala.
Sheeta - leopardo;
Histah - cobra;
Tublat - "nariz qubrado", o padrasto de Tarzan, marido de Kala.
Bundolo - "Matar", grito de guerra dos grandes macacos. Em Português, a palavra virou "bandolo", possivelmente para evitar trocadilhos com "bunda" (teoria deste humilde articulista);
Kreegah bundolo! - "Cuidado, eu mato!". A frase em Português migrou para "krig-ha, bandodo!" e, ironicamente, acabou sendo o nome do primeiro disco do roqueiro Raul Seixas em 1973.[2]
Kreegah bundolo! - "Cuidado, eu mato!". A frase em Português migrou para "krig-ha, bandodo!" e, ironicamente, acabou sendo o nome do primeiro disco do roqueiro Raul Seixas em 1973.[2]
Ka-goda - "Você se rende?" (p. 83)
Já
que os grandes macacos falam, eles podem ter uma ideia, ainda que vaga,
sobre sua identidade e qual posição ou hierarquia possuem junto a
homens e gorilas. E de fato a tem. Vejamos os termos que eles possuem
para estas criaturas:
Mangani - grande macaco, ou seja, eles;
Tarmangani - homem branco, literalmente "grande macaco de pele branca";
Gomangani - homem negro, "grande macaco de pele negra";
Bolgani - gorila.
Ou
seja, eles são manganis e os gorilas, bolganis. Não há confusão, trate-se de espécies diferentes. Tão diversas entre si, que manganis e bolganis são
inimigos nos livros e se atacam à primeira vista.
Um dos primeiros grandes feitos de Tarzan, ainda com 15 anos e usando pela primeira vez a faca de seu pai humano, é matar um gorila. Naquele momento, ao sair da cabana onde seus pais morreram, ele é surpreendido por um destes primatas e reage de forma instintiva como qualquer outro grande macaco de sua tribo teria feito. Até então, ele ainda não descobrira, através da auto-educação pelos livros ali guardados, que era um homem. A cena é interessante porque o gorila, ao avistar o adolescente, hesita, provavelmente por não ter visto um humano antes. Tarzan, por outro lado, vê a si como um grande antropoide e ataca o símio. (p. 38-39)
Um dos primeiros grandes feitos de Tarzan, ainda com 15 anos e usando pela primeira vez a faca de seu pai humano, é matar um gorila. Naquele momento, ao sair da cabana onde seus pais morreram, ele é surpreendido por um destes primatas e reage de forma instintiva como qualquer outro grande macaco de sua tribo teria feito. Até então, ele ainda não descobrira, através da auto-educação pelos livros ali guardados, que era um homem. A cena é interessante porque o gorila, ao avistar o adolescente, hesita, provavelmente por não ter visto um humano antes. Tarzan, por outro lado, vê a si como um grande antropoide e ataca o símio. (p. 38-39)
O
mais desconcertante sobre os grandes macacos é que eles chamam os humanos de tarmangani ou gomangani. Os manganis veem os homens como parentes, uma
espécie ligada a eles próprios, apenas de peles claras ou negras, ou seja, são tipos diferentes de manganis. Isso não se dá apenas
fisicamente, mas por fatores como fala e costumes!
Os
termos "tarmangani" e "gomangani" são novos no vocabulário deles. Literalmente. Vemos isto por uma série de informações:
- No capítulo IX de Tarzan of the Apes, entitulado Man and Man (Homem e Homem), é dito explicitamente por ERB que a parte da selva habitada por Tarzan e pelos grandes antropoides era virgem e inexplorada por qualquer tipo de pioneiros (p. 57), salvo pelo Homem-Macaco e seus finados pais biológicos, abandonados ali em decorrência de um motim. Apenas aos 18 anos do herói, a floresta é invadida pela primeira vez por outros humanos, a tribo de Mbonga, fugindo de maus tratos nas mãos de brancos caçadores de marfim. Depois temos a chegada dos ingleses e franceses.
- Mais adiante, no capítulo XI, "King of the Apes", ERB, novamente de forma explícita, mostra como os grandes macacos ainda não tinha cunhado termo para designar homem apesar da convivência com Tarzan e do breve e trágico encontro com seus pais biológicos, os únicos humanos dos quais tiveram conhecimento até então.
É o próprio Tarzan quem informa isso ao leitor quando derrota uma leoa e busca reafirmar sua força ante os demais antropoides, mas estanca em seu discurso de glória quando vai dizer aos seus companheiros que é não é um símio (ape), mas um homem (man). Apesar dele conhecer tanto como se escreve este vocábulo em Inglês através dos livros de seu pai, quanto o conceito por trás dele, falta-lhe um similar na língua dos seus irmãos siamescos. (p. 76)
- No capítulo IX de Tarzan of the Apes, entitulado Man and Man (Homem e Homem), é dito explicitamente por ERB que a parte da selva habitada por Tarzan e pelos grandes antropoides era virgem e inexplorada por qualquer tipo de pioneiros (p. 57), salvo pelo Homem-Macaco e seus finados pais biológicos, abandonados ali em decorrência de um motim. Apenas aos 18 anos do herói, a floresta é invadida pela primeira vez por outros humanos, a tribo de Mbonga, fugindo de maus tratos nas mãos de brancos caçadores de marfim. Depois temos a chegada dos ingleses e franceses.
- Mais adiante, no capítulo XI, "King of the Apes", ERB, novamente de forma explícita, mostra como os grandes macacos ainda não tinha cunhado termo para designar homem apesar da convivência com Tarzan e do breve e trágico encontro com seus pais biológicos, os únicos humanos dos quais tiveram conhecimento até então.
É o próprio Tarzan quem informa isso ao leitor quando derrota uma leoa e busca reafirmar sua força ante os demais antropoides, mas estanca em seu discurso de glória quando vai dizer aos seus companheiros que é não é um símio (ape), mas um homem (man). Apesar dele conhecer tanto como se escreve este vocábulo em Inglês através dos livros de seu pai, quanto o conceito por trás dele, falta-lhe um similar na língua dos seus irmãos siamescos. (p. 76)
QUEM, ENTÃO, CRIOU TARZAN?
A resposta é: nenhuma espécie de antropoide conhecida pelo Homem. Não foram gorilas, chimpanzés e tampouco qualquer outro tipo de símio catalogado pela ciência moderna até agora.
Ainda há algo ainda mais surpreendente sobre a identidade deles, mas antes, é importante apontar que ERB não era um biólogo ou um antropólogo: ele era um autor de livros de ficção pulp. De uma mente incrivelmente inventiva e criativa, sim, mas não estamos falando de um indivíduo que dedicou horas de pesquisa para estudar hábitos de símios e assim descrever, com realismo, como eles se comportam em seus romances.
Podemos ir mais longe e analisar toda a África de Burroughs como extremamente irreal, apesar de fantástica. Dentro deste postulado, é possível dividir essa o nível de realismo em suas obras sobre Tarzan e a África em duas categorias:
- Fantasia: as selvas de ERB são repletas de ruínas antigas de civilizações perdidas, como a Cidade de Opar, cujos habitantes evoluíram dos Atlantes. De forma alguma, até hoje, isso foi comprovado pela História ou arqueologia, mas faz parte da fantasia do universo do autor. Tais detalhes não são resultados de erros envolvendo falta de conhecimentos ou conceitos malformados acerca de biologia, geografia, antropologia ou qualquer outra ciência, sendo meramente fruto da criatividade do escritor;
- A falta de informação propriamente dita: aqui entram questões referentes a ideias pré-concebidas ou errôneas que a maioria das pessoas, especialmente no final do século XIX da era comum, tinham sobre a África e o Oriente, bem como hereditariedade e o evolucionismo darwinista. Infelizmente, ERB parece ter sido acometido por algumas delas como produto de sua sociedade e meio. Por exemplo, nas matas africanas de Burroughs, encontramos leões (e leoas) rondando por uma floresta equatorial, algo absurdamente irreal, pois estes animais, apesar de chamados popularmente de "rei das selvas", vivem nas savanas daquele continente. É difícil apontar aqui onde começava a simples falta de conhecimento e a liberdade criativa no tocante a estas questões.
Com relação a seus grandes macacos, Burroughs tinha completa ideia do que queria e simplesmente exerceu sua imaginação para, de forma deliberada, apresentar uma espécie de primata desconhecida pelo Homem moderno, um tipo de elo perdido e, em sua aparência, hábitos e costumes, juntou uma série de informações fragmentadas que se tem sobre diversas espécie de símios, dos pequenos aos grandes.
Portanto, os grandes macacos não são frutos de seu desconhecimento a respeito dos primatas de grande porte (embora isso possa ter existido, ainda que não possa ser comprovado) e se enquadram no quesito fantasia, assim como ruínas atlantes e outros elementos fabulosos em suas narrativas.
O ELO PERDIDO
A prova de ERB ter criado uma espécie de elo perdido na figura dos grandes macacos é o ritual do dum-dum praticado tanto por eles quanto pela tribo de Mbonga e onde o próprio autor se apressa em traçar paralelos evolutivos: o costume da tribo africana, incluindo a prática de canibalismo ritualístico, é algo tão primitivo que remota à aurora do Homem e esta aurora passa pelos grandes antropoides. É como se os humanos guardassem, dentro de sombras de sua memória inconsciente e ancestral, recordações perdidas sobre esse antigo e selvagem rito. (p. 46-50, 72-73)
Um detalhe chama atenção quando Tarzan, escondido nas árvores, vê pela primeira a "versão" do ritual pelos homens: a crítica do autor à própria natureza humana. Enquanto no dum-dum dos grandes macacos o prisioneiro é trazido morto e tem o corpo destroçado a golpes durante o frenesi da cerimônia, Tarzan nota como os homens são sádicos ao aprisionar seu cativo vivo a um poste enquanto vão matando-o lentamente a estocadas de lanças durante a dança e a batucada, para então cozinhar suas carnes. Os grandes macacos, em diversas partes, mostram uma maior dignidade do que seus parentes distantes. A tradução e notas abaixo são minhas.
"No círculo maior se organizavam as mulheres, gritando e batendo nos tambores. Aquilo lembrou Tarzan do dum-dum e então ele sabia o que esperar [ou seja, o canibalismo ritual, além disso, na versão dos grandes macacos, também as fêmeas eram as percursionistas (p. 47), embora lá elas fossem idosas]. Ele se perguntou se eles [os nativos] se atirariam sobre suas carnes [do prisioneiro] enquanto ele ainda estava vivo. Os macacos não faziam tal coisa."
ERB vai além, listando que o dum-dum deu origem, com a evolução do Homem e passagem dos milênios, a outros ritos no desenvolvimento da humanidade, culminando naqueles "da igreja e do estado" (p. 46), provavelmente referindo-se à antropofagia simbólica da ingestão da hóstia.
Vale lembrar que há um criptídio - um animal não-documentado e cuja existência não foi provada pela ciência - que se encaixa nesta descrição: o famoso Pé-Grande, que no Canadá se chama Sasquatch e nos Himalaias, Yeti.
ERB não se baseou nestas criaturas lendárias (ou não) para criar seus grandes antropoides, mas é incrível como, num caso de coincidência bizarra, os relatos desses seres, especialmente nos EUA durante o século XX da era comum, acabaram se aproximando com aqueles dos símios de sua literatura: humanoides de quase 2 metros de altura, corpo coberto por pelo espesso, capazes de assobiar e bater nas árvores com galhos para indicar sua localização. Algumas tribos norte-americanas até relatam casos de mulheres engravidadas por eles. As crianças resultados deste cruzamento forçado tinham, segundo as lendas orais, uma enorme dificuldade em se desenvolver como "membros da tribo" e morriam logo cedo.
A pergunta que nos resta é: até que ponto podemos considerar os grandes macacos de ERB realmente bestas ou uma parte perdida da humanidade? Aqui entra o âmbito da fantasia novamente. Burroughs, por várias vezes nos livros, apesar de lhes dispensar costumes e tratos humanizados, é categórico ao lhes colocar, ainda, no lugar e na escala dos animais, dos ancestrais humanos pertencentes ao reino das feras, enquanto qualquer antropólogo teria sérias dúvidas sobre essa classificação.
CINEMA E QUADRINHOS
Se por um lado enquanto na maioria dos filmes estrelados por Tarzan os grandes macacos apareceram como atores fantasiados em nada se parecendo com gorilas, por outro não apresentavam o comportamento diferenciado visto nos romances de ERB, restringindo-se a se comportarem basicamente como símios, não mostrando linguagem articulada e pouca ou nenhuma organização tribal.
Entre os exemplos mais notáveis podemos citar Tarzan of the Apes (1918) e Greystoke - A Lenda de Tarzan (1984).
O novo filme estrelado por Alexander Skarsgård e com lançamento marcado para julho nos EUA, por outro lado, acerta ao apresentar os grandes macacos como uma espécia diferente, mas não se aprofunda na questão.
Mas nem todas as
mídias foram cruéis com Tarzan. Nos quadrinhos, ele encontrou seu ninho e
teve a felicidade de ser desenhado e roteirizado por alguns dos
melhores artistas do gênero até agora: Hal Foster (criador do Príncipe Valente
depois), Russ Manning, Joe Kubert e Burne Hogarth foram alguns dos gênios
que, gentilmente, cederam sua pena e talento à criação máxima de ERB e souberam retratar os grandes macacos de forma única, sem ligá-los
visualmente a alguma espécie conhecida de antropoides, além de respeitar os demais aspectos do universo do escritor.
Vejamos alguns
exemplos abaixo:
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Tarzan, prancha dominical de Russ Manning. Fonte: Tarzan.com |
"Apesar de próximos como são à humanidade, os grandes macacos são incapazes de medicar uns aos outros..."
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Tarzan por Burne Hogarth Fonte: Lambiek |
Ainda assim, alguns artistas e ilustradores não escaparam de incorrer no erro de apresentar os grandes macacos como gorilas.
"TARZAN - O FILHO DAS SELVAS"
Por fim, se você quer realmente conhecer Tarzan e não as sofríveis adaptações as quais temos maior acesso hoje, a editora Zahar relançou o primeiro romance do Homem-Macaco, Tarzan of the Apes, o mesmo que serviu que serviu de base para maior parte da pesquisa deste artigo. Com o nome de Tarzan - O Filho das Selvas, trata-se de uma edição virtualmente impecável, onde além de uma ótima tradução de Thiago Lins, temos ainda alguns dos painéis desenhos por Hal Foster ilustrando o livro.
Lins, num dos raros casos dentro do que esta pesquisa levantou, foi um dos poucos tradutores dos livros de Tarzan a atentar e apontar para o leitor as sutilezas envolvendo os grandes macacos que, de gorilas, não possuem nada.
Mesmo com a imagem minada por tantas adaptações ruins, o livro de ERB é uma leitura vibrante e única, mais do que recomendada.
BIBLIOGRAFIA
BURROUGHRS, Edgar Rice, Tarzan of the Apes, New York: Dover Publications Inc., 1997.
[1] ABRAMS JR, H. Leon. A Dieta dos Gorilas. Disponível em <http://www.umaoutravisao.com.br/secoes/Alimentacao/a_dieta_dos_gorilas.html>. Acesso em 2 de maio de 2016.
[2] Kreegah bundodo. Disponível em <https://en.wikipedia.org/wiki/Kreegah_bundolo> Acesso em 2 de maio de 2016.
Muito interessante o texto. Realmente desconhecia por completo a verdadeira origem de Tarzan.
ResponderExcluirObservando como ERB construiu o personagem, penso que o Tarzan, da Filmation, aproxima-se, um pouco, da sua real origem.
Sim, Kenny! É praticamente uma unanimidade que a animação da Filmation foi a melhor adaptação para a TV do personagem.
ExcluirPerfeito
ResponderExcluirObrigado, Rafael!
ExcluirProvavelmente ERB baseou-se nas lendas sobre o Macaco de Bondo, um criptideo do qual foram encontrados vestigios recentemente.Ele mescla caracteristicas dos Gorilas e dos Chimpanzes.seria um Chimpanzé com dois metros de altura, 100 kg de peso e muito feroz.Tâo feroz que chega a ponto de matar (e devorar) até leões e leopardos.
ResponderExcluirRoberto, já li esses relatos e foi a primeira coisa que me lembrei ao ler o livro de Tarzan, que inclusive ainda não terminei, e foi o que me fez pesquisar sobre esses símios e chegar aqui. O blog me ajudou muito nessa dúvida. A versão que leio é da ed. Principis (Ciranda Cultural) e apesar de alguns erros de digitação a leitura é muito agradável e não relaciona os grandes macacos da tribo de Tarzan aos gorilas.
Excluir