A questão é que nos últimos 40 anos a carreira de Bond nos cinemas foi inconstante: os filmes estrelados por Roger Moore transformaram o personagem numa caricatura de si, embora um expoente considerável da cultura pop dos anos 70. Vieram então os dois filmes estrelados por Timothy Dalton, bastante superiores em qualidade de roteiro àqueles de Moore, seguidos por Goldeneye no meio dos anos 90 estrelado por Pierce Brosnan, outra aventura acima da média. Infelizmente, deste ponto em diante, 007, enquanto franquia cinematográfica, voltou a se tornar algo pueril. Influenciada pela abordagem dos filmes na época, a cinesérie se tornou um blockbuster de verão para público juvenil.
Foi neste momento que a trilogia Bourne no começo dos anos 2000 sacudiu os eixos da série ao mostrar novamente uma produção requintada sobre espionagem internacional sem o apelo cômico ou extremamente falso em termos de realismo por onde haviam encaminhado os filmes de Bond. Foi desta forma que os produtores resolveram dar um reboot na série em 2006, ou seja, começar do 0, sem necessariamente levar em conta os outros filmes. Brosnan já havia se afastado do papel e outro 007 tinha de ser escolhido então era o momento ideal para fazer esta guinada.
Assim, com Daniel Craig escalado para viver o agente secreto, decidiram reiniciar a franquia pelo caminho mais certo possível, adaptando para os cinemas Cassino Royale, nada menos que a primeira aventura de Bond escrita por Ian Fleming, mas transpondo a trama dos anos 60 para o presente, claro. Isto implicou em algumas sutis mudanças como, por exemplo, eliminar o cenário da Guerra Fria e remover a SMERSH, a agência de inteligência soviética contra a qual 007 acaba se confrontando através de alguns personagens do romance.
Cassino Royale foi um sucesso de crítica e público e acabou trazendo Quantum of Solace (2008) e Skyfall (2012), ambos mantendo um certo padrão de qualidade embora Skyfall supere Quantum. Chegamos então ao quarto filme desde o reboot, vigésimo quarto de toda a série de James Bond no cinema, 007 Contra Spectre, e se gostar dos outros filmes era algo fácil, este se mostra um desafio.
Logo de início, um nome chamou atenção nos créditos: John Logan. Aqui no Brasil, não se tem a tradição de se falar ou reparar em quem assina o texto deste ou daquele filme ou série, mas se pararmos para notar isso, veremos como alguns autores tendem a repetir em seus projetos vários cacoetes estilísticos. Logan é um destes: ele é dono de uma obra extremamente irregular e mesmo seu melhor trabalho até o momento, o seriado Penny Dreadful, é repleto de lugares comuns e clichês a despeito do extremo requinte visual da direção de arte, reconstrução de época e figurino. Segure o trabalho de roteirista na mente, já volto a ele.
No filme, 007 continua sua perseguição à misteriosa organização Spectre cujas pistas vem sendo jogadas aqui e ali desde Cassino Royale. Em paralelo, o novo M (Ralph Fiennes) tenta lutar contra burocratas interessados em transformar o serviço de inteligência britânica, o MI6, num grande "irmão olho": tudo vendo e registrando sem se importar com liberdades pessoais. São duas tramas correndo em paralelo que eventualmente se encontrarão e eclodirão.
Do lado bom, o filme continua com uma produção de ponta e a boa direção de Sam Mendes. O engajamento de Daniel Craig como 007 transpôs a barreira do protagonista e ele agora também é um dos produtores executivos do longa. O discurso sobre a legitimidade de se invadir a privacidade das pessoas em nome da segurança também é interessante e tem sido explorado em outros filmes desde 2001 como reflexo da onda mundial de esforço anti-terrorista. Por fim, a ideia em si do confronto entre Bond e a Spectre, algo trilhado desde 2006, também é envolvente, mas infelizmente não foi bem executada.
Já os problemas... Ah, esses são bem mais fáceis de numerar. 007 Contra Spectre é um filme mau escrito. Tem um roteiro ruim. Ponto. Ele funciona bem até sua metade, mas daí em diante, perde totalmente o ritmo e o tom, torna-se uma colagem quase grotesca de ações e cenas esperadas num filme de James Bond e só. Por exemplo, em uma sequência absolutamente banal, o herói e a bondgirl com a qual está em certo momento lutam contra um assassino profissional. A situação é forçada e ocorre dentro de um trem só para criar algum suspense visual. Depois dos três fazerem absolutamente tudo que já se viu em outras produções do gênero, James e a garota se livram do homem da forma mais batida possível, olham um para cara do outro, a garota diz: "e agora, o que fazemos?", corta para eles se beijando no quarto, partindo paras preliminares. Cassino Royale, Quantum of Solace e Skyfall já mostraram para toda uma nova geração que Bond e suas coadjuvantes mereciam mais. São mais.
Chegamos, portanto, à bondgirl Léa Seydoux no papel de Madeleine Swann. Nada de errado com a moça em si, linda e charmosa, mas sua personagem é totalmente dispensável. Culpa dos autores do filme. Mesmo a forma como ela se une a 007 é absolutamente clichê: filha de um ex-membro da Spectre, o pai dela se mata para fugir da organização. James conta isso a ela e diz que garantiu ao homem que protegeria a filha dele ao que ela dispara algo do tipo "quero ir com você, preciso saber o que houve com meu pai". Bond tinha acabado de contar a ela tudo que aconteceu. Não tinha mais nada para saber.
O longa é tomado por lugares comuns, falas e situações já vistas em diversos outros filmes que acabam por destruir qualquer oportunidade de genuinamente ver 007 Contra Spectre como um filme original ou sequer relevante para aquilo feito dentro da franquia nos últimos anos.
Um dos pontos mais tristes é ver bons atores como Christoph Waltz novamente desperdiçados em vilões caricatos como aqueles dos tempos de Roger Moore. Em determinada cena, que sinceramente beira o patético, ele tortura Bond e não podemos deixar de lembrar a sequência similar em Cassino Royale, só que lá existia uma sensação real de perigo e desconforto, enquanto aqui vemos o talentoso Waltz apertar teclas de um console de uma forma que nem ele consegue SE convencer de estar ameaçando a vida de um homem.
Monica Bellucci é outra que protagoniza uma cena totalmente sem sentido na qual vai para cama com 007 mesmo após ele ter confessado ter matado o marido dela. Novamente: lugares comuns, clichês, caricaturas travestidas de personagens... E um talentoso Sam Mendes, o diretor já citado, com pouco para salvar ao lado de seu excelente ator principal. Quando não há uma história boa, tudo o que diretores e atores podem fazer é minimizar os danos.
Por fim, um ponto de atenção: muito mais do que Quantum e Skyfall, 007 Contra Spectre é uma continuação não apenas de Cassino Royale, mas de TODOS os 3 filmes até agora, o que não deixa de ser algo inédito na franquia, pois os longas de James Bond tem histórias fechadas em si geralmente. São feitas referências faladas, escritas e visuais a eventos e pessoas das três últimas produções. Sinceramente, se você não viu nenhum deles, recomendo assistir os 3 antes de Spectre. Se viu só um ou dois, veja os três: o volume de citações, rostos e nomes pode ser desconcertante e levam qualquer menos atento a facilmente se perder no (chato) enredo que aliás, só funciona enquanto fechamento (será?) dos últimos filmes, pois, como obra individual, este novo 007 termina como um trem descarrilado. Resta apenas esperarmos que não seja preciso outro Bourne para por tudo de volta aos trilhos.
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