Apesar de incontestavelmente divertido e um primor em termos técnicos, "O Despertar..." é também um filme indiscutivelmente medíocre em vários pontos:
- O roteiro não leva a história geral do universo Star Wars a lugar algum, ao contrário: ele se concentra em restaurar o status dos personagens e da "resistência" (leia-se "rebelião) para antes d'O Retorno de Jedi.
- A história nada mais é do que uma refilmagem sexista - e mal feita - de Uma Nova Esperança. Aqui, há uma legião de defensores do indefensável que buscam justificar isso com argumentos de "homenagem", "referência" etc. Mais sobre a diferença entre estes conceitos e a própria falta de imaginação aliada à busca por transitar num terreno seguro visto em "O Despertar..." abaixo.
- Os parcos momentos onde a produção realmente brilha com alguma luz são os poucos tirados - ou "adaptados" - de livros, revistas,, novelas etc que formavam o antigo "universo expandido" o qual, diga-se de passagem, "O Despertar..." foi o carro-chefe para, ironicamente, por uma pedra em cima e "resetar".
Por trás da lambança que arrecadou milhões pelo mundo e deixou um monte de deslumbrados em seu rastro, há a Disney, uma companhia que vive fugindo da ira e do radar feminista por popularizar comercialmente no passado o conceito de "princesas encantadas" em suas animações, o mesmo estando em voga até hoje rendendo milhões para ela mesmo sob protestos e contestações. Assim, as produções atuais da companhia são focadas em mostrar mulheres fortes, decididas e independentes, basicamente matando dois coelhos com um tiro só, mantendo foco em protagonistas femininas e apresentando-as com moldes mais adequados ao paladar feminista. É de se espantar que os dois filmes de Star Wars lançados desde a compra da franquia por eles tenham personagens femininas como protagonistas? Não, a empresa parece disposta a tornar aquela galáxia muito, muito distante o reino não das princesas encantadas, mas das rebeldes, jedi ou não, duronas.
Enfim, é a Disney sendo a Disney. Lógico, ter uma protagonista feminina não o torna uma produção necessariamente feminista, embora seja o que acabe ocorrendo com "O Despertar...". Por que? Os modelos femininos da Disney atualmente comportam o mesmo padrão de heroína: ou são as boazinhas, duronas e cabeças-duras que encaram tudo e todos para salvar a quem amam ou são as rebeldes duronas e cabeças-duras que encaram tudo e todos para salvar a quem amam depois de levarem uma sacudida da vida. Rey, em "O Despertar..." é a primeira enquanto Jyn, estrela de Rogue One, é a segunda. E não para aí, se você estiver curioso, dê uma pesquisada no google por "doutora Aphra", a aliada de Darth Vader na revista mensal dele produzida pela Marvel - cuja a dona é a, sim, Disney - e vejam o tal estereótipo de personagem feminino dela em aplicação novamente. Ah, Aphra também fala com o sith que matou criancinhas e trucidavas moffs antes do café como se ele fosse o Manoel da padaria, afinal, é o que uma garota descolada com óculos de aviador na cabeça faz para ganhar a vida na galáxia encantada da Disney.
Dito isto, ironia das ironias, Rogue One acaba sendo um tapa na cara do episódio 7 (e em muita da abordagem dada pela Disney para Star Wars em outras mídias) por apresentar quase tudo que eles fizeram de errado no primeiro filme feito da maneira certa, indo desde a narrativa, passando por apresentação de personagens até as supostas referências.
Sim, especialmente quando faz referências e homenagens às duas trilogias é onde Rouge One dá uma verdadeira aula a todos os envolvidos criativamente em "O Despertar...". O grande mérito do filme é saber como encaixar estes elementos, as referências e homenagens, deixando espaço suficiente para uma única e não-recondicionada história ser contada, para seus personagens serem igualmente únicos e não reciclagens dos vistos anteriores apenas com nomes trocados, mudança de gênero e etnia.
Quando falamos em um universo EXPANDIDO - do qual Rogue One é o primeiro filme de fato a ganhar as telas - implica-se em enriquecer a experiência anterior da hexalogia e séries de tv, livros etc. É isto que ele faz e muito bem. Ganhamos uma visão nova e emocionante dos eventos do episódio IV, formam-se elos entre as duas trilogias, detalhes novos são explicados e até personagens classicos (evitando spoilers) aparecem para dar uma nova dimensão à grande trama contada nos 6 filmes mesmo seus intérpretes já tendo falecido ou estarem velhos demais para reprisar seus papéis de quase 40 anos atrás, enquanto outros voltam da nova trilogia - ou prequels - e não é Jar Jar Binks. Preparem-se também para uma das melhores cenas envolvendo Darth Vader no cinema. Se você gosta minimamente do universo expandido, há também material para você aqui: pisque e perderá de ver personagens das animações Clone Wars e Rebels finalmente ganharem seu reconhecimento num filme com atores reais.
Assim, chegamos novamente ao embate Rey versus Jyn. Enquanto Rey é a soma de praticamente todos os erros que se pode cometer ao escrever uma personagem feminina forte para um filme até então predominantemente centrado no universo imaginário aventuresco masculino (salva de ser um desastre completo apenas pelo carisma de sua atriz, Daisy Ridley), Jyn é um ser humano crível, é valente independente de seu sexo e sem a necessidade de ser mostrada "incrível" todo momento pelo simples fato de ser mulher rodeada por homens. O maior desfavor que a Disney fez a Jyn foi ter apresentado Rey antes ao público. Isso e o sotaque de sua intérprete Felicity Jones, o qual já perto do final me pensar em finalmente ter conhecido uma anã de Tolkien ou pelo menos segundo Peter Jackson, mas em frente.
A produção também cumpre uma discreta tradição vista pouco nos filmes da franquia até hoje: trazer para o cinema personagens apresentados nas animações. Tanto Boba Fett em O Império Contra-Ataca quanto o General Grievous em A Vingança dos Sith fizeram suas estréias previamente em desenhos animados. Aqui é a vez do personagem Saw Gerrera interpretado por Forest Whitaker cuja estréia se deu na série digitalmente animada Clone Wars situada por volta de 20 anos antes do filme. Vivido com a experiência e carisma típicos de Whitaker, Gerrera é tanto uma figura-chave no filme quanto cumpre o papel de acenar àqueles fãs mais ardorosos que acompanham a franquia além das telas de cinema.
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Saw Gerreira visto 20 anos mais jovem (direita) liderando as forças rebeldes em Onderon e depois em Rouge One, vivido por Forest Whitaker. |
Rogue One tem seus problemas. Novamente basta ver a mão da Disney por trás deles e não, não estou de forma alguma vilanizando a companhia nesta resenha. Ela está nisso não por amor a estes personagens ou por este universo ficcional - ou qualquer outro do qual seja proprietária incluindo o da Marvel -, mas por dinheiro e não tem nada de errado com isso. É a máquina trabalhando e cabe aos fãs escolher o que gostar e consumir ou não, simples, mas as críticas cabem e tem seu lugar.
A problemática reside no fato de, como dito acima, a Disney, tal como várias empresas de entretenimento no ocidente, ter um modelo engessado de trabalhar, as famosas "receitas de bolo" enquanto a própria origem de Star Wars nos anos 70 foi uma quebra destes mesmos moldes convencionais de narrativa do cinema de aventura e ficção deste lado do Atlântico. Se você acompanhou minimamente a produção do filme nesses últimos quase 2 anos, deve ter reparado em dois detalhes:
1) Um marketing pífio para uma produção de Star Wars. Até agosto de 2016, a divulgação de um filme deste tamanho e de uma franquia tão importante era risível e mínima.
2) Refilmagens. Processo comuns em filmes segundo o pessoal das relações públicas, mas o qual no geral denuncia divergências entre a equipe criativa (diretor, roteirista, montador etc) e o estúdio e/ou produtores. No cenário atual de Hollywood, elas ocorrem basicamente quando o filme entregue não atende as expectativas projetas pelo estúdio e/ou recebe péssimas avaliações nas sessões-teste feitas por eles. Rouge One também passou por pelo menos duas montagens diferentes incluindo refilmagens até ganhar o OK do estúdio.
É fácil explicar os dois pelo tom militar e sombrio do filme. Ele mostra o lado feio de toda guerra onde mesmo o quem está lutando pela causa certa tem sua banda podre - espiões e matadores - que realizam o trabalho sujo que ninguém quer assinar embaixo, enquanto pilotos e generais colhem o reconhecimento pelas batalhas "limpas". A Disney talvez tenha comprado a ideia muito cedo e acabou fazendo alguns ajustes de última hora para deixar a produção mais palatável para crianças e "toda a família", as quais acabam sendo sentidos no começo do filme, pessimamente montado e com uma continuidade mais fragmentada do que o começo de Esquadrão Suicida, até alguns pontos da metade onde os buracos do roteiros - impossível de saber se intencionais ou causados pelas refilmagens e eliminação possível de certas cenas - são preenchidos com tiros de blasters e rifles.
Aliás, é interessante notar como o filme da Disney tem tanto em comum com o da Warner nos quesitos problemas de produção e finalização, ambos partilhando basicamente a mesma história ainda que dificilmente vejamos uma versão diferente de Rouge One em dvd ou blu-ray. Assim como a proposta e o projeto de Star Wars Ep. VII que Lucas estava trabalhando quando vendeu a franquia, o corte original do filme ficará mantido à sete chaves, isto SE chegar algum dia ao público.
Ainda assim, a despeito dos esforços por aparesentar uma montagem final menos violenta (na medida do possível) e, de tabela, mais palatável para um programa familiar, Rouge One é o filme mais maduro e adulto de Star Wars já feito, ultrapassando neste sentido O Império Contra-Ataca e A Vingança dos Sith por apresentar a realidade crua e dura de um conflito armado, escolhas táticas e com alguns de seus protagonistas transitando numa linha cinza de heroísmo. Se olharmos atentamente as duas trilogias anteriores, o ato mais violento que vemos perpetrados pelo império ou pelos separatistas é a traição e morte dos jedi. Levando-se em conta eles estarem no papel de comandantes e generais numa guerra, isto dificilmente conta como violência contra civis indefesos, ainda sendo uma cena triste. Mesmo o assassinato dos padawans por Anakin é visualizado brevemente numa hologravação e a destruição de Alderaan, de longe o evento mais cataclísmico causado pelas forças imperiais, é morna e impessoal a ponto da própria Leia ficar muito bem, obrigado, no restante do filme e terminar sorrindo antes dos créditos rolarem.
Rouge One nos leva para o meio das batalhas e dos territórios controlados pelos imperiais, podendo enfim visualizar em primeira mão a crueldade com a qual tratavam os cidadões e seu estado de terror do qual a Estrela da Morte seria o ápice, bem como o poder destrutivo dela in loco, ou seja, nada de planetas explodindo ao longe. Há inevitáveis acenos de mãos aqui e ali de crítica social ao terrorismo e ao combate do terrorismo na atualidade. Se havia alguém com alguma dúvida de que a temática e a estética do império foi baseada no nazismo, ela cai toda por terra aqui.
O último e talvez mais grave erro da produção seja a trilha sonora. É a primeira vez que John Williams não cuida das partituras de uma produção de Star Wars, mas isso não implicaria que outro maestro não fosse capaz de entregar algo tão ou até mais competente. Na vida, ninguém é insubstituível. Certo. Infelizmente, não foi o caso e a trilha assinada por Michael Giacchino é bastante dispensável e nada memorável, só se destacando quando acaba tocando incidentalmente alguns dos trechos previamente compostos por Williams. De fato, ninguém é insubstituível, mas em alguns casos, algumas pessoas acabam sendo muito necessárias. Aliás a carência de trilhas sonoras originais (não as canções) memoráveis nos filmes de Hollywood de 20 anos para cá é algo notável e preocupante.
Os aplausos finais do texto vão para o elenco e para os personagens. Eles formam uma equipe de heróis (ou anti-heróis ou anti-vilões, novamente uma estranha e não-intencional correlação com Esquadrão Suicida), cada um com sua especialidade, algo evocado na trilogia clássica com a equipe de Luke, Han, Chewbacca, Leia, C-3PO e R2-D2, fato trazido de volta na série Rebels. Novamente, a Disney segue a receitinha de bolo sabor politicamente correto ao por atores de várias nacionalidades nos papéis visando a bilheteria em diferentes regiões do globo, mas todos estão tão bem que seria uma injustiça fazer qualquer repreensão. Impossível não aplaudir a atuação de Donnie Yen, veterano ator de Hong Kong, como Chirrut Îmwe, o guardião do templo jedi, cujo personagem cumpre a tarefa voluntária ou não de - novamente - expandir e enriquecer o universo mitológico da franquia e se torna de longe um dos, senão o mais interessante da produção ainda que infelizmente não tão explorado como poderia (e deveria), embora ele seja nossa ponte com a Força num filme sem jedi, sabres-de-luz e com a parca presença direta de um sith. É quase certo que Chirrut vai ganhar muitas revistas e livros pela frente explorando seu passado. Eu daqui vou esperar com a carteira aberta.
Enfim, Rogue One tem uma história em linha reta ainda que perfurada aqui e ali, é cheio de boas homenagens feitas na dose e medidas certas, com uma narrativa única o suficiente capaz de encantar fãs novos e antigos, fazendo seus acertos superarem suas falhas. Acaba sendo o tiro no pé da própria Disney com a nova trilogia (até aqui) e uma parte do ela própria vem fazendo em livros, revistas e até animações, tornando-se a carta de amor a Star Wars que todo fã gostará de ler e ainda assim interessante o suficiente para despertar o fascínio de quem não tem qualquer ligação emocional com a franquia. Indispensável.

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