[CINEMA] A MULHER DE PRETO (2012)

Pode-se dizer que os britânicos inventaram e cultivaram até a maturidade as modernas histórias de fantasmas ao menos aqui no ocidente. Sua rica tradição de castelos abandonados, pubs centenários, criminosos degolados e mulheres violadas e mortas deu origem a uma sistemática série de relatos assombrosos regados a chá em noites frias ao lado das lareiras. As histórias de fantasma na Grã-Bretanha são um patrimônio nacional e seus protagonistas, as almas penadas, vem em todas as idades, sexos e classes ou castas sociais: de nobres vagando por suas casas antigas a plebeias uivando na noite em busca de justiça.

Foi desse celeiro fértil que, a partir do século XVIII em diante, autores como Oscar Wilde e Arthur Conan Doyle tiraram inspiração para diversas de suas obras. Assim, chegamos ao romance The Woman in Black escrito por Susan Hill e publicado pela primeira em 1983. O sucesso de crítica e público desta novela gótica garantiu não apenas sua encenação no teatro em uma peça até hoje em exibição, mas também uma versão para TV no telefilme de 1989 produzido para a ITV Network. Por fim, o cinema se voltou para esta pequena obra-prima da moderna literatura de horror em 2012 e resolveu ceder-lhe a tela grande. O resultado é um dos melhores filmes de terror sobrenatural produzidos deste lado do Pacífico desde O Grito (2003) com o diferencial daquele ter sido a refilmagem de um mega-sucesso japonês, Ringu, enquanto este trata-se de uma obra inteiramente ocidental.

A Mulher de Preto é a típica história de fantasmas britânica e reúne de forma quase clichê absolutamente todos os elementos presentes nelas: a casa mal-assombrada, o fantasma de uma mulher vestida de alguma cor pela qual ela é chamada, crianças (algumas mortas, mas nem tanto), vilarejos remotos, enterros, gritos espectrais na noite e visitas a cemitérios, este um elemento típico dos romances góticos. A trama gira em torno de Arthur Kipps (Daniel Radcliffe), um jovem escriturário viúvo de Londres que, no fim do século XIX, vai para a vila de Crythin Gifford, situada no interior da Inglaterra, para cuidar do inventário de uma cliente de sua firma que faleceu recentemente sem deixar herdeiros, apenas uma propriedade perto da cidade, a mansão de Eel Marsh. Ao chegar no vilarejo, Kipps é hostilizado por todos os moradores menos Samuel Daily (Ciarán Hinds) de quem logo se torna amigo. Seu contato local, Jerome (Tim McMullan), também está interessado em sua partida imediata e parece disposto a fazer tudo para impedir sua visita à velha casa. Desafiando todos e - claro - ao bom senso, o rapaz se recusa a voltar para a capital e parte para a decadente moradia disposto a concluir seu trabalho apenas para descobrir o passado trágico em torno de seus antigos moradores e quem aterroriza a pequena localidade.

"O que ela quer, não se sabe, mas ela sempre retorna.../ O espectro da escudião./ A Mulher de Preto."
Apesar de toda soma de elementos hoje tão comuns e explorados à exaustão em outros filmes, livros, games e televisão, A Mulher de Preto se supera na utilização deles e dá uma aula de calafrios sob a direção de James Watkins. Muito ajuda neste quesito o trabalho conjunto da direção de arte (Paul Ghirardani e Kate Grimble), decoração de cenário (Niamh Coulter) e design de produção (Kave Quinn) ao criarem uma Eel Marsh pavorosa e tétrica, tornando-a não apenas a segunda grande personagem do filme, mas a vilã coadjuvante... Ao menos para os nervos dos espectadores. A presença opressora na decadente, velha e assombrada mansão é sentida em todos os cômodos explorados por Kipps com uma reconstituição de época impressionante. O resultado final é uma produção bastante requintada tanto visualmente quanto na narrativa pelo roteiro de Jane Goldman, principalmente levando-se em conta o orçamento modesto de US 15 milhões de dólares devidamente pagos com a merecida bilheteria mundial de quase US$ 128 milhões e o sucesso massivo de crítica.

A equipe na frente das câmeras também merece os devidos elogios. Watkins conduz de maneira segura um elenco pequeno, mas bastante competente no qual se destacam um amadurecido Daniel Radcliffe saído da cinesérie Harry Portter e o veterano Ciarán Hinds, criando um trágico Samuel Daily.

Mas grande parte do sucesso do filme enquanto produção de terror não se deve inteiramente por mérito próprio. É bom frisar como o cinema sobrenatural ocidental teve de se reinventar nos últimos 20 anos bebendo diretamente da fonte dos filmes de fantasmas orientais, mais especificamente os produzidos na Coréia do Sul e Japão. Apesar de situado na era edwardiana, A Mulher de Preto possui uma clara influência deste moderno cinema de horror asiático cujo foco não são sustos e sim, através da criação de uma atmosfera crescente tensão, com aparições e acontecimentos bizarros se sucedendo, provocar medo no espectador. Sim, medo, um conceito tão esquecido no modernos filmes estadunidense desde A Troca (The Changeling, EUA, 1980). Existem alguns momentos onde você pulará do assento, claro, mas no geral, o objetivo da narrativa aqui é construir o sentimento de pavor: vultos, espectros na janela, figuras aparecendo e sumindo ao fundo, cadeiras de balanço se mexendo sozinhas... Esteja preparado para tudo.

Talvez a maior curiosidade para os fãs do gênero seja o pedigree do longa: ele faz parte do retorno da Hammer Film Productions ao mercado de cinema. Extremamente famosa por seus filmes de terror na década de 60, a Hammer passou por um período de decadência entre 80 e os anos 2000, quando se reestruturou nos últimos anos e, graças a um investimento maciço de dinheiro e criatividade, lançou entre outras produções o remake do sueco Deixe Ela Entrar em 2010.  A Mulher de Preto vem apenas a coroar de forma primorosa sua volta gloriosa às (boas) produções.

Mesmo com todas estas qualidades, o filme não é livre de suas pequenas falhas. Igual à produção de 1989 para a TV, Jane Goldman tomou liberdades com o desfecho dos personagens, mas isso só incomodará aqueles familiarizados com o livro ou preocupados com uma maior fidelidade junto à obra original.

A Mulher de Preto não é, sob hipótese alguma, um filme para todos: ele faz parte daquela pequena elite de longas metragens capaz de deixar em sua mente impressões e cenas lavadas por toda vida e relembradas nos piores momentos como ao faltar luz em sua casa, por exemplo, ou quando estiver em alguma situação onde os medos sobrenaturais se sobrepõe à razão. É desaconselhável para pessoas impressionáveis, crianças muito novas etc e isto não é publicidade barata. Por esta razão, é o melhor filme de horror produzido no ocidente há mais de uma década, quiçá duas, e merece cada segundo de seu tempo investido nele, mesmo perdendo, na troca, algumas horas de sono.



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Formado em Design Gráfico pela UEMG, apaixonado por História, Sociologia, Literatura, Filosofia, sociedades orientais, culturas antigas e cinema asiático.

Meus hobbies são leitura, escrever, games, desenhar e colecionismo (livros, filmes, quadrinhos, figuras de ação, dvds etc). Também possuo um blog dedicado ao Superman, o Kryptonauta.

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