
Dentre uma seleta lista de escritores reconhecido por este trabalho em algum ponto de suas carreiras, temos Andrzej Sapkowsky e o seu O Último Desejo, coletando os primeiros contos escritos ainda nos anos 80 envolvendo seu personagem mais famoso, o "bruxo" Geralt de Rívia.
Passado num mundo de ambientação medieval, Geralt vive num universo de cidades feias e sujas, onde as altas classes são permeadas com corrupção, assassinato, incesto e intrigas. Do lado de fora dos muros das urbes, estão florestas virgens povoadas de elfos sanguinários, vampiros, lobisomens e seres amaldiçoados, alguns extraído da mitologia eslava de onde o autor, um polonês, tirou boa parte de sua inspiração. A outra parte, ao menos neste primeiro volume de quatro já editados até agora pela Martins Fontes, vem justamente dos supracitados "contos de fadas", buscando uma releitura dos mesmos baseada em suas versões originais, porém temperadas pela criatividade e violência crua de Sapkowsky. É assim que, por exemplo, a Branca de Neve vira uma ladra vivendo na companhia de um bando de anões ladinos a quem lidera, mas responsáveis por estuprá-la sistematicamente no começo da "parceria" enquanto A Bela e a Fera vivem um brutal e arrepiante amor sobrenatural.
É neste mundo distópico, mas incrivelmente fiel à realidade histórica do período medieval a despeito dos elementos de fantasia colocados aqui e ali que transita o Geralt de Rívia, o Lobo Branco, um mutante treinado por uma uma antiga ordem para se tornar um "bruxo", um caçador sobrenatural de monstros com poderes e habilidades muito superiores às de um ser humano normal, mas cujo próprio processo de transformação o deixou com os cabelos totalmente brancos e olhos com íris felinas. Ele é o elemento comum em todos os contos assim como o dilema moral em se optar pelo "mal menor". Afinal, numa sociedade tão dura e cruel, o bem é praticamente inexistente e as escolhas transitam muitas vezes em se optar pelo dano menor.
Economista de formação, Sapowsky consegue se sair magnificamente bem em sua estreia como escritor e se mostra um manipulador de emoções e surpresas. Parte da apreciação do livro consiste em localizar sobre qual "conto de fadas" ele está falando no momento, enquanto a outra é descobrir como irá trazê-lo à sua realidade literária. Como o volume 1 reúne as primeiras histórias escritas pelo autor ainda na forma de contos, elas são relativamente independentes uma das outras e servem como um maravilhoso mapa do dia-a-dia de Geralt enquanto vaga pelo mundo, entre cidades e a área rural, confrontando monstros - inumanos ou não - e sendo também confrontado por uma sociedade que o enxerga igualmente como uma monstruosidade.
É interessante também notar a diferença entre a prosa e ambientação criada por Sapowsky e aquelas de autores norte-americano como R.A. Salvatore e Tracy Chapman. Europeu nascido um estado antigo e envolto numa rica história medieval de conquistas, batalhas e castelos, o mundo dele, mesmo sendo um universo "de fantasia", soa terrivelmente mais real, autêntico e verdadeiro aos cenários medievais de seus colegas estadunidenses e canadenses.
O sucesso de Geralt na Europa foi tanto que ele ganhou uma série de TV, adaptações para quadrinhos e por fim uma série de jogos para computador produzida pela produtora polonesa CDRed Projekt, agora caminhando para seu terceiro e derradeiro ato. Lançado em 2007 com o nome The Witcher, o primeiro game foi um enorme sucesso de crítica e público e graças a este sucesso no mercado norte-americano Sapowsky começou a ser editado nos EUA, chegando finalmente ao Brasil. Aliás, cabe dizer que os games são incrivelmente fiéis ao universo dos livros, explorando as mesmas temáticas aqui presentes. Se você leu um dos livros do "bruxo", deve jogar um deles. Se você jogou um dele, tem mais do que obrigação de agora conferir a fonte original.
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Geralt conforme representado no game The Witcher 3: Wild Hunt Fonte: Gamespot |
A edição brasileira da Martins Fontes está quase impecável. Quase. Além do virtuoso acerto em optar pelas as capas das versões espanholas com as lindas artes de Alejandro Colucci, a tradução de Tomasz Barcinski é muito competente, ao menos a partir de algumas partes do original em Inglês que li, porém existe um problema pequeno, mas bem significativo aqui: o uso da palavra "bruxo" para designar a profissão de Geralt. Por conta disso, eu usei aspas até o momento quando a mencionei no contexto do livro. O termo foi uma escolha errada do tradutor por algumas razões:
- No original polonês, Geralt é chamado de wiedźmin, a palavra é um neologismo criado por Sapkowsky para designar os mutantes caçadores de monstros, versados em esgrima e artes mágicas, ou seja, foi inventada pelo autor, não existindo em dicionários[1], nem na língua polaca. Ela parte da raiz de "bruxa", wiedzma[2], mas com desinência masculina. É importante notar que os wiedźmins não são "bruxos", ou seja, a versão masculina das bruxas, se assim fosse o autor teria simplesmente usado o termo vedmak[3], o equivalente aos "bruxos" no folcore eslavo;
- A ideia principal aqui é que os próprios "wiedźmins" são personagens míticos como vampiros, lobisomens, anões, elfos etc no universo sapowskyano, sendo portanto inéditos no imaginário folclórico popular;
- Originalmente, wiedźmin havia sido traduzido como hexer nos EUA[4], outro erro de tradução assim como nas edições brasileiras agora onde buscou-se apenas uma palavra no dicionário inglês que engloba-se vagamente a "profissão" de Geralt. Isto só foi consertado/corrigido quando o CDRed Projekt lançou o game Wiedźmin e o nomeou como Witcher[5], respeitando a ideia dos mutantes sapowskyanos serem denominados por um neologismo por se tratarem algo totalmente inédito no folcore europeu. Note como "witcher" também usa a raiz de bruxa em inglês, witch, mas com uma desinência masculina ou masculinizadora (er) tal como Sapowsky fez para cunhar o termo em polonês. Simplesmente, um trabalho genial de tradução e adaptação.
Infelizmente, toda esta nuance escapou inteiramente ao tradutor e, como o Português de fato possui um masculino direto para "bruxa" (diferente de vedmak/wiedzma ou hexer/witch), optou-se pelo uso do mesmo, ignorando que, no imaginário latino, um bruxo é algo totalmente diferente do que Sapowsly propõe com seus "wiedźmins". Qual seria a solução? Ter-se criado um neologismo em em nossa língua da mesma forma como foi cunhado em Inglês pela CDRed Projekt.
Mas que isso de forma alguma seja um detrimento para conferir esta pequena obra prima da literatura de fantasia européia e a ótima edição lançada pela Martins Fontes no Brasil. Não importa se você gosta de boa literatura, romances medievais ou fantasia, O Último Desejo é um livro para ser lido e não se espante se ao seu fim você descobrir que o maior monstro de todas suas histórias é o próprio Homem.
BIBLIOGRAFIA
[1],[2] <http://forums.cdprojektred.com/archive/index.php/t-19049.html> Acesso em 3 de maio de 2015.
[3] Vedmak <http://en.wikipedia.org/wiki/Vedmak> Acesso em 3 de maio de 2015.
[4], [5] The Witcher <http://en.wikipedia.org/wiki/The_Witcher> Acesso em 3 de maio de 2015.
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