Este texto surgiu originalmente como parte da atualização do meu artigo sobre os elementos do antigo universo expandido que estão ganhando retorno no novo, mas um tema tão vasto e tão cheio de ramificações não poderia ficar restrito a um parágrafo em meio a outros assuntos. O nome também é uma referência à minha faixa preferida daquelas compostas por John Williams, Light of the Force.
Com Rouge One lavantando milhões de aplausos e dólares para a Disney, as atenções do público estão se voltando para um personagem único no filme, Chirrut Iwne vivido pelo veterano astro do cinema de Hong Kong, Donnie Yen. Iwne é cego e usa a Força para "ver", rendendo alguns dos combates e cenas mais sensacionais do filme.
Ainda que ideia para a cegueira de Iwne tenha vindo do próprio Yen, a surpresa para a maioria pode ficar no fato de duelstas cegos (ou quase isso) já constarem dos primórdios de Star Wars e além.
Enquantos outros aspectos de Star Wars são colagens de vários elementos ocidentais ou ainda tipicamente estadunidenses, como os seriados de cinema (os serials), a soap opera de ficção científica, western etc, George Lucas baseou quase inteiramente a filosofia e estética jedi nos samurais e no bushido, o código de conduta adotado por estes guerreiros japoneses e pelo qual guiavam suas vidas.
O fascínio do diretor/escritor ia além da parte histórica: ele também é um grande fãs dos filmes de samurais produzidos no japão desde a segunda metade do século XX da era comum. O termo "jedi", segundo o próprio Lucas, deve ter vindo do japonês "jidaigeki", as produções para tv e cinema de época sobre samurais.
Não à toa, sua primeira escolha para viver o papel de Obi-Wan Kenibi em Uma Nova Esperança era Toshiro Mifune, astro deste tipo de produção nipônica e quem deu vida a um de seus principais personagens, Yojimbo. No fim, para melhor ou pior, o papel acabou indo para um veterano do ocidente, Alec Guiness, tanto pela recusa de Mifune como por motivos comerciais pois o estúdio precisava de um grande nome conhecido pela audiência no ocidente para dar alguma validade à produção. É preciso lembrar de Star Wars era um projeto desacreditado, visto pelos produtores como um roteiro louco permeado por atores desconhecidos e fortemente pautado em efeitos especais, até então algo só usado vastamente em produções B.
Em 2013, o site starwarsnewsnet.com divulgou uma interessantíssima revelação da filha de Mifune onde, além de confirmar a antiga notícia de que o pai era a escolha inicial de George Lucas para viver Obi-Wan, ela revelou que após recusar o papel, Lucas tornou a procurar o ator desta vez com a oferta dele viver ninguém menos que Darth Vader! E mais: o capacete do vilão havia sido projetado inicialmente para deixar o rosto de Mifune à mostra. Confiram na íntegra a matéria aqui.
![]() |
Toshiro Mifune como Yojimbo. |
Dentro do universo cultural produzido - livros, mangás, filmes etc - em torno dos samurais, temos um personagem único: Zatoichi, criado pelo novelista Kan Shimozawa e depois levado para os cinemas numa série de filmes estrelados por Shintaro Katsu. Cego, o bushi (outro nome pelo qual aqueles guerreiros eram conhecidos devido a sua adesão ao bushido) vagava pelo Japão combatendo valentões e corrigindo injustiças enquanto se passava por um massagista. O herói ganhou nada menos de 26 produções para o cinema e depois uma série de televisão também estrelada por Katsu. Foi ele o responsável por inspirar o filme Fúria Cega no ocidente.
Zatoichi popularizou a ideia do espadachim cego, capaz de lutar movido por instintos altamente aguçados e uma técnica sem igual com a espada (ken/katana). O conceito em si não é nada novo na cultura oriental. Olhando a ficção chinesa, ela é povoada de heróis e heroinas capazes de manipular o chi, sua energia interna (ki em japonês), para realizar proezas proezas incríveis. Quando os filmes chineses, por exemplo, mostram seus personagens correndo sobre a água, subindo prédios correndo ou fazendo qualquer tipo de façanha sobre humana, eles estão na verdade exprimindo de forma alegória sua incrível manupalação do chi. É parte essencial do gênero literário e cinematográfico conhecido como wuxia.
Qualquer semelhança entre o chi e a Força não é mera coincidência. As façanhas que os jedi e os sith fazem nos 6 filmes (e Chirrut em Rouge One) é a mesma manipulação desta energia invisível para dar saltos fabulosos e lutar com maestria sobre-humana. Darth Sidious mesmo faz uma série de movimentos impossíveis enquanto luta no episódio III justamente para mostrar como lado negro lhe permite burlar as leis naturais, algo que os jedi tentam preservar.
O primeiro contato com os jedi é na persona de Obi-Wan ou antes, Ben Kenobi, um antigo general das Guerras Clônicas exilado no distante Taooine e tido pela população local como um eremita louco. Tanto suas roupas são uma clara alusão aos robes japoneses como a forma de lutar usado as duas mãos para segurar a espada veio trazida diretamente por George Lucas do kenjutsu, a displina de luta com lâminas grandes praticada pelos samurais.
Mas o segundo contato do público com a Força em si se faz da forma mais "samurai" possível. Luke, a quem Obi-Wan está começa o treinamento, está usando seu sabre-de-luz sem sucesso para bloquear raios de uma esfera quando Kenobi põe um visor para tampar os olhos os olhos do garoto. Há toda uma explicação sobre como os sentidos podem nos enganar enquanto o jedi deve se deixar "guiar pela Força". Ou seja, o herói está praticamente lutando às cegas e é justamente quando consegue, num lampejo, defender-se de um disparo. O tiro fatídico que ele dá na Estrela da Morte no fim também é metaforicamente assim, sem a ajuda dos computadores e usando apenas seu instinto.
![]() |
Fonte: Screenrant |
A ideia de duelistas cegos era tentadora demais para Lucas deixar passar brevemente. Nos anos seguintes, ele e seus colaboradores refinaram-na. Traçando uma linha cronológica, o primeiro personagem verdadeiramente cego foi Jerec, mestre jedi que caiu para o lado negro se tornando um jedi sombrio (dark jedi) e serviu ao império como inquisidor até ser morto por Kyle Katarn. Ele foi apresentado no game Star Wars: Jedi Knigh - Dark Forces II. O ano era 1997 o hoje antigo Universo Expandido estava tomando forma e sendo definido como uma integração total entre livros, quadrinhos e jogos eletrônicos.
![]() |
Jerec, o jedi sombrio e ex-inquisidor imperial. |
Posteriormente foi revelado que Jerec fazia parte de uma raça cega, os miralukas. Sendo hominídeos, eles tinham dois diferenciais:
- Não possuíam olhos, apenas as cavidades oculares vestigiais.
- Eram seres naturalmente poderosos com a Força, a qual usavam para "ver" e, por conta de sua intensa ligação com ela, desenvolveram uma sociedade filosófica e centrada na meditação, tendo contribuído com muitos jedi para a República no perído anterior à queda dela.
A soma destes dois fatores levaram os miralukas a adotorem o hábito de cobrir os olhos com máscaras cerimoniais ou visores.
Desnecessário dizer que eles se tornaram de imediato uma das raças mais admiradas pelos fãs do antigo universo expandido pela sua unicidade, os tradicionais guerreiros e diplomatas cegos dos jedi.
Quando o estúdio de games Obsidian Entertainement elaborou a sequência de Star Wars: Knights of Old Republic (lançado originalmente pela Bioware), eles trouxeram um companheiro de equipe desta raça para o jogador, a jedi Visas Marr, a qual se tornou uma personagem igualmente muito querida da audiência.
![]() |
Imagem conceitual de Visas Marr em Star Wars: Knights of the Old Republic II - The Sith Lords |
Marr foi responsável por apresentar aos fãs uma miraluka relativamente "normal" após o contato com o desvirtuado Jerec: a forma de pensar, agir e valores de sua raça estavam presentes nela e toda mística em torno deles. Neste ponto da história expandida de Star Wars, os miralukas já estavam integrados e o próprio Jerec já tinha sua história muito bem mapeada como um de seus membros.
Em 2011, quando lançou o MMO The Old Republic, situado cronologicamente mais ou menos 300 anos depois do primeiro Knights of Old Republic, a Bioware trouxe os miralukas como uma das raças republicanas disponíveis para os jogadores. A grande maioria acaba escolhendo-os para jogar como jedi cônsules (consulars) devido a incrível sinestesia entre a cultura miraluka e a abordagem dos pensadores e filósofos jedi além do fato da trama particular do consular envolver uma misteriosa doença originária no lado negro.
![]() |
Um jedi miraluka em The Old Republic. |
Mas o fantasma de Zatoichi ainda rondava Star Wars. Em 2009 quando lançou Star Wars: The Force Unleashed, um projeto multimídia envolvendo game, novelização, quadrinização e uma linha de figuras de ação, Lucas e sua equipe desenvolveram o personagem do general e mestre jedi Rahm Kota.
Passada entre os episódios III e IV, a história mostrava a formaçao da aliança rebelde. Kota havia sido um dos tantos generais jedi a lutar nas guerras clônicas, mas sua suspeita e desgosto pelos clones o levou a formar uma milícia particular composta por combatentes humanos não-clonados. Quando a ordem 66 foi executada, ele conseguiu escapar por não ter clones em seu batalhão e começou uma guerrilha pessoal contra o império.
É quando Vader manda Starkiller, seu assassino pessoal e estrela do projeto, atrás do velho mestre. No combate entre os dois, Starkiller acaba cegando Kota com o próprio sabre-de-luz dele. Isto não impede o general de continuar lutando e voltar a aparecer em outros games e histórias até o reboot da Disney. Acompanhe a luta dos dois abaixo e veja o momento em que o jedi é ferido pelo aprendiz de Vader.
Mesmo cego e numa linda apresentação da filosofia jedi, Kota perdoa Starkiller, torna-se seu mestre e acaba trazendo o rapaz para a luz, fato responsável por levá-lo a enfrentar Vader e o Imperador no fim. Há a opção para o jogador fazer o caminho inverso e seguir no lado negro, mas o cânone aceito no universo expandido anterior aceitava o contrário e, desnecessário dizer, o final não era nada feliz embora pontuado por esperança.
Visualmente, não há dúvida de que Lucas e sua equipe, tal como na produção de Uma Nova Esperança, voltaram a se debruçar sobre o universo gráfico dos samurais para compor o visual de Kota. Desde o penteado até as roupas, com a tradicional armadura sobre o kimono, ele parece diretamente saído de um conto japonês. Seu nome, uma mescla de sânscrito com sobrenome nipônico (Kota) é a coroa de uma composição incrível e, não à toa, ele se tornou rapidamente um personagem favorito dos fãs.
![]() |
Kota e Starkiller |
Em 2014, a Disney comprou a franquia e apertou o reset em todo universo expandido. Isto quer dizer que, até segunda ordem, Jerec, miralukas, Visas Marr e Rahm Kota entraram para o esquecimento ou antes para o cânone pessoal de seus fãs. O apelo de Kota, porém, era forte demais para ser esquecido.
Quando terminou sua segunda temporada, a animação Rebels, a qual também se situa entre os episódios III e IV tal como Force Unleashed e igualmente narra (nova) a formação da aliança rebelde no (novo) universo expandido, o público ficou atônico ver ao herói Kanan, um antigo padawan que sobreviveu à ordem 66, ser cegado por Darth Maul de forma totalmente similar à luta entre Starkiller e Kota.
E não pára aí, além de usar a Força para "ver" e conseguir derrotar Maul, Kanan, segundo o trailer da terceira temporada, passa a usar uma máscara a qual lembra em muito aquelas usadas pelos miralukas enquanto, assim como eles e Kota, continua usando a Força para enxergar e, sim, lutar.
![]() |
Kanan com sua máscara. Fonte: Flickeringmyth.com |
Ficou claro para os fãs antigos que a Disney estava mesclando a história de Kota com a da Kanan e assim, resgatando elementos de The Force Unleashed para o novo cânone, fundindo os dois personagens. Quanto aos miralukas, ainda é incerto se serão trazidos de volta uma vez que The Old Republic, mesmo contando com milhões de usuários e com uma nova expansão, Knights of the Fallen Empire, já foi oficialmente anunciado como não sendo mais parte do universo oficial, e sim, de agora em diante, algo como uma interpretação da Bioware sobre o passado de Star Wars (o game se passa 4000 anos antes dos filmes).
Espadachins cegos tem, seja em qualquer parte do globo, um grande fascínio e mística em torno de si. Star Wars, como aglutinador de gêneros, soube beber muito bem desta fonte e gerar ao longo de seus quase 40 anos vários personagens e criaturas interessantes tanto do lado da luz como da escuridão. Tanto Rebels quanto Rouge One apontam que o caminho para os duelistas da Força está longe longe de chegar ao fim.
0 comentários:
Postar um comentário