[QUADRINHOS] PORQUE "MIRACLEMAN" DEVE SER SUA LEITURA OBRIGATÓRIA

Inglaterra, 1982. O jornalista freelancer Mick Moran é surpreendido por um ataque terrorista enquanto cobre uma manifestação numa usina de energia de nuclear. Em meio à confusão da ação dos bandidos, ele vê relefletida na água de a palavra ATOMIC como CIMOTA (tendo o "c" som de "k") e, subitamente, ele se lembra de quem realmente é, ou melhor, de quem esqueceu de ser. Ao pronunciar em voz alta a palavra "mágica", ele é transformado pela primeira vez desde 1963 no super-herói que o mundo nunca conheceu, Miracleman.


Miracleman
Imagem: Miraclemen.info
O tom trágico e ainda assim instigante do resumo sumariza todo apelo poético da narrativa de Miracleman escrito por Alan Moore, aqui creditado como "O Escritor Original" (mais sobre isso abaixo) e desenhado por Gary Leach. Dizer que a obra é genial ou indispensável para qualquer pessoa que não apenas goste de quadrinhos, mas de literatura seria pouco. E por que? O que torna esta série obscura para tantos leitores de HQs algo tão singelo e importante?

Para começar, três autores foram responsáveis nos anos 80 por redefinir os quadrinhos para as gerações futuras: Frank Miller com seu O Cavaleiro das Trevas e Batman Ano Um, Neil Gaiman com Sandman e Alan Moore, este com uma obra vastíssima no período coroada por Watchmen e sua passagem por Monstro do Pântano. Se você é novo no universo das HQs ou apenas curioso, basta dizer que tudo produzido de lá para cá foi ou baseada na abordagem crua e realista inaugurada por estes autores, ou foi contestando-a. Resumindo: é impossível passar por qualquer produção digna de nota nos quadrinhos dos últimos 30 anos sem esbarrar com a obra desses gigantes e, em especial, com a de Moore. E tudo começou com Miracleman publicado originalmente na revista Warrior no Reino Unido. Deu para ter uma ideia do peso histórico da série agora?

Com seu trabalho aqui, Alan Moore praticamente inaugurou nos anos 80 a abordagem de realismo dentro dos quadrinhos. Miracleman é, mais do que todos os demais personagens até então, o único super-humano no mundo real. Como seria para nós acordar e descobrir que um homem pode demolir um prédio com um murro ou voar sem a ajuda de aparelhos? E quando dois indivíduos assim brigam abertamente na rua, qual seria o resultado real de devastação para as pessoas de carne e osso? Sim, hoje em dia várias obras e até filmes como a mais nova abordagem do Superman para o cinema, O Homem de Aço, já se debruçaram sobre essas perguntas e quiseram explorar essas facetas, mas tudo, acredite, começou com Mick Moran lá em 1982 sob a pena de Alan Moore.

A relevância história poderia ser ofuscada pela qualidade do texto, claro, ou seja, uma obra importante ainda que com narrativa frágil, mas não é o caso. As linhas de Miracleman transitam entre lirismo e literatura, crueza e poesia. Estão entre as melhores já escritas para uma HQ e o ritmo não diminui com as demais edições, apenas se intensifica.

MAS QUEM É MIRACLEMAN?

Sim, você já viu lá em cima que ele é Mick Moran, jornalista de meia-idade capaz de se transformar com uma "palavra mágica" num ser super-poderoso, certo? Errado. Existe muito na história verdadeira de Miracleman a ser descoberto com desenvolvimento de sua narrativa nas próximas edições, mas o próprio personagem tem sua dose de curiosidade e mistérios enquanto criação editorial, afinal qualquer semelhança com o Capitão Marvel da DC não é mera coincidência.

Miracleman foi criado em 1954 por Mick Anglo para a revista Marvelman da editora L. Miller & Son que publicava histórias do Capitão Marvel no Reino Unido. Fazendo um resumo rápido dos acontecimentos, naquele ano a Editora Fawcett, então dona do personagem, suspendeu a publicação do Capitão Marvel nos EUA em vista de um processo de plágio do Superman movido pela DC Comics.

Assim, a editora inglesa se viu sem novas histórias para publicar e tomou a decisão de simplesmente criar um plágio do próprio Capitão Marvel para continuar com as ótimas vendas da revista por lá. Billy Batson se tornou o menino Mick Moran e o bom Capitão virou o Marvelman, a palavra "Shazam!" virou "Kimota!" (atomic de trás para frente, lembra?) e não à toa: a fonte dos poderes dele deixou de ser mágica para se tornar científica. Com o tempo, outros coadjuvantes da família Marvel original foram substituídos: o Capitão Marvel Jr virou o Young Marvelman e a Mary Marvel teve uma mudança de gênero, tornando outro garoto, o Kid Miracleman. O próprio Dr. Silvana, inimigo deles, tornou-se o Dr. Gargunza. Tudo ia bem até a revista ser cancelada em 1963.

Nos anos 80, Alan Moore propôs uma releitura desse clássico dos quadrinhos britânicos da Era de Prata criando uma história onde investigava a premissa de como seria o mundo se Marvelman tivesse realmente existido no passado, esquecido de quem era em 1963 (ano do cancelamento de sua revista num uso maravilhoso de metalinguagem), envelhecido como Mick Moran e voltasse a ativa no presente (1982). O autor pegou todos os elementos ficcionais e absurdos dos quadrinhos antigos e buscou dar-lhes uma explicação racional para super-humanos e "palavras mágicas". O resultado acabou se tornando uma das mais importantes séries já produzidas dentro da indústria de HQs inaugurando uma nova forma de se pensar os "super-heróis".

MIRACLEMAN NOS EUA E NO BRASIL


Miracleman #1 (Panini)
Capa Alternativa
 Nos anos 90, a editora Eclipse havia começado tarefa de trazer a série para os EUA e queria publicar o personagem com seu nome original, Marvelman. A Marvel foi em cima, acionou advogados e proibiu-os o uso do nome "marvel", levando a Eclise a cunhar "Miracleman" (note que o herói tem MM no peito, é a mesma situação do nosso Demolidor/Daredevil). Moore ficou absolutamente enfurecido com a iniciativa e anunciou publicamente que jamais trabalharia para a editora do Homem-Aranha.

Avançando alguns anos e após uma longa batalha judicial envolvendo os direitos de Miracleman entre Neil Gaiman e Todd McFarlane da qual me isentarei de aprofundar aqui, a Marvel - pasmem - acabou ficando com personagem para si e recomeçou o longo processo de reeditar suas histórias nos EUA, mas lembram daquela rusga criada com Alan Moore nos anos 90? O autor é conhecido por ser um homem de palavra.  Por esta razão, ele vetou a publicação de seu nome nas reedições dela agora, vindo creditado como "O Escritor Original".

Enfim, chegamos a edição da Panini. Primeiro, preciso dizer que Miracleman já foi editado no Brasil entre 1989 e 1990 pela Editora Tannos. Eu tenho o privilégio de ter os exemplares originais.

Miracleman #2 (Panini)
A Tannos se esforçou  para lançar um personagem absolutamente obscuro num mercado dominado pela editora Abril numa época inóspita marcada pelo começo da era Collor, recessão, confisco de poupança etc. Desnecessário dizer que, apesar da irregularidade na periodicidade e no formato/acabamento, eles conseguiram lançar apenas os  primeiros números comprimindo o LIVRO UM: SONHO DE VOAR e interromperam a publicação, feita em preto e branco e impressa primeiro em papel apergaminhado e depois em um de menor qualidade. Ainda assim, são edições perseguidas por fãs até hoje em sebos.

Bom, ao menos este problema está agora solucionado com a reedição da Panini, a primeira desde 1990 e, no momento em que este artigo está sendo escrito, está chegando ao número 3 com a proposta de um título mensal cobrindo todas as edições de Miracleman nos moldes publicados pela Marvel atualmente nos EUA. No que ela se diferencia das edições da Tannos? Primeiro, elas são coloridas e foram baseadas em restauração de cor feita pelo próprio Gary Leach. Segundo, existe toda uma nova revisão de texto, nova tradução e uniformidade no tamanho das revistas (a primeira editora no Brasil chegou a mudar levemente o tamanho delas).

Miracleman #3 (Panini)
Há uma pequena polêmica correndo solta sobre o formato de publicação optado pela Panini no Brasil: revistas mensais ao contrário de encadernados de luxo. Bom, já vi gente defendendo a iniciativa baseado no argumento de que Miracleman é um personagem obscuro e que seria arriscado lançar um encadernado caro sobre um desconhecido, mas o mesmo vale para uma revista mensal. Sim, ele é um título de nicho, foi e continua sendo, por isso mesmo e pela importância da obra, merecia uma publicação de maior qualidade.

Por outro lado, a Panini está baseando sua impressão nas da Marvel dos EUA, que ainda estão publicando o personagem mensalmente e até agora lançaram 2 encadernados com o terceiro programado para 2015. Justifica-se assim a opção no Brasil pela periodicidade mensal. As edições 1 e 2 brasileiras trazem ainda histórias originais do Miracleman dos anos 50 e 60, verdadeiras joias para os curiosos assinadas pelo criador original do personagem, Mick Anglo.


Em suma, Miracleman é uma obra essencial, seminal e absoluta sem falsos exageros. Se você pode comprar apenas UMA revista com seu dinheiro atualmente, que seja esta. Se você quer colecionar UMA revista, que seja esta. Se você quer começar a ler quadrinhos por UMA revista, que seja por esta. Se você precisa de uma prova do poder literário e artístico de uma revista em quadrinhos, diga "Kimota!" e veja por si mesmo.

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Formado em Design Gráfico pela UEMG, apaixonado por História, Sociologia, Literatura, Filosofia, sociedades orientais, culturas antigas e cinema asiático.

Meus hobbies são leitura, escrever, games, desenhar e colecionismo (livros, filmes, quadrinhos, figuras de ação, dvds etc). Também possuo um blog dedicado ao Superman, o Kryptonauta.

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